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ARGUMENTOS ÉTICOS NÃO-ESPECISTAS


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por Letícia Guimarães Braz

A redefinição do estatuto moral dos animais é a idéia principal defendida pelos filósofos críticos, Humphry Primatt (A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty against Brute Animals, livro de 1776); Andrew Linzey (“The Theo-Rigths of Animals”, artigo de 1976); Richard D. Ryder (“Speciesism”, Livro Victims of Science, de 1975); Peter Singer (“The Significance of Animal Suffering”, artigo de 1991; e “Todos os animais são iguais…”, livro Libertação Animal de 1975); e Tom Regan (“The Case for Animal Rigths”, artigo de 1991). Esses autores concentram suas críticas à moral tradicional, antropocêntrica e egoísta que nos foi legada, cheia de preconceitos e discriminação e propõem a expansão do círculo da moralidade de modo a incluir os interesses dos animais não-humanos.Primatt, Ryder, Linzey, Singer e Regan mostram a incoerência da moralidade especista, isto é, da concepção de que a participação numa espécie, por si só, é uma razão para se dar mais peso aos interesses de um ser do que aos de outro. O termo especismo foi criado em 1973 por Richard Ryder na Inglaterra. Reivindicamos respeito e direitos para nós e para os membros da nossa espécie, por reconhecermos que temos necessidades; mas, simplesmente ignoramos as necessidades da mesma ordem (semelhantes) dos seres que não nascem na nossa espécie, a Homo sapiens, atestando desse modo nossa incoerência moral.

Primatt e Ryder apontam a incoerência da argumentação moral tradicional e traçam um paralelo entre a escravização de humanos e a escravização de animais. Ryder faz uma analogia dos argumentos utilizados pelos proprietários de escravos para defender a escravidão, com os argumentos ainda utilizados para defender a exploração dos animais. Já aquele mostra a contradição do comportamento humano, que ao mesmo tempo em que se opõe à escravização humana é complacente com a escravização de animais. Primatt, ainda sem utilizar o termo especismo, já condenava tal prática, em sua tese: “a dor é intrinsecamente má, não importa a configuração ou a aparência de quem a sofre, ela será, para si, uma experiência má”.

Ryder, Singer e Regan, ao criticarem o especismo fazem uma analogia com outras formas de preconceito como racismo e sexismo, também baseados na aparência. As três formas de preconceito, racismo, sexismo e especismo expressam o descaso egoísta pelos interesses de outros e por seu sofrimento, quando não têm a mesma aparência daquele que os maltrata. As concepções morais que não admitem que temos um dever de respeito direto para com os seres que sofrem com nossas ações, entre eles os animais, a teoria cartesiana, a tradição judaico-cristã, o contratualismo e a teoria kantiana, por exemplo, são alvo das críticas dos autores acima citados.

Primatt e Singer utilizam uma citação de Voltaire para criticar a teoria cartesiana mecanicista da natureza animal. Voltaire, em tom de ironia, escreve: “…a natureza construiu, então, os animais, do mesmo modo que os humanos, dotando-os de um sistema nervoso central organizado, só para ter o gosto de os fazer insensíveis…!?”.

Ryder, por sua vez, aponta que a ciência cada vez mais produz evidências sugerindo que as diferenças importantes entre humanos e animais são menores do que se imagina. Em contrapartida, ele faz críticas à comunidade científica, que reconhece haver um continuum biológico entre humanos e indivíduos de outras espécies, mas não dá o passo lógico do reconhecimento de um continuum moral, ou seja, não trata os animais de acordo com o que eles realmente são: nossos parentes. Para Ryder, por serem mais esclarecidos sobre a natureza animal do que outros humanos, os cientistas não deveriam ter esse tipo de preconceito.

Primatt, Ryder, Linzey, Singer e Regan defendem a coerência moral humana na consideração da dor e do sofrimento (senciência) de animais não-humanos, mostrando a importância da imparcialidade no juízo moral ético. Para eles, a senciência é o critério relevante para a inclusão na comunidade moral.

O apelo à coerência ética está presente nos argumentos dos cinco autores.

Linzey promove uma discussão ao mesmo tempo filosófica e teológica sobre direitos animais. Se Deus criou todos os seres, argumenta Linzey, é incoerente reivindicar direitos apenas para os seres humanos e negá-los aos demais animais que possuem a capacidade de sentir (senciência) e podem, por isso, sofrer, ao menos que Deus fosse indiferente para com a criação. Ryder apela à coerência usando a ficção de uma invasão extraterrestre, e considerando a possibilidade de seres com outras linguagens fazerem conosco o que fazemos aos animais por não serem aptos ao uso da nossa linguagem. Acharíamos correto isso?

Primatt, em uma de suas teses coloca: “trata teu cavalo como desejarias que teu dono te tratasse, se fosses tu um cavalo”, um experimento mental por analogia, fundado sobre a regra de ouro.

Todos os filósofos que propõem uma ética voltada aos animais não-humanos usam o exemplo dos humanos não-paradigmáticos, aqueles que fogem do paradigma estabelecido pela sociedade, destituídos de razão, linguagem, pensamento livre e auto-consciência, como estratégia de argumentação. Se são concedidos direitos para esses humanos, e se seus interesses e necessidades são considerados relevantes, por que não considerar do mesmo modo os interesses e necessidades dos animais?

Singer, ao criticar o princípio da igualdade humana, tendo por referência a capacidades mentais superiores, alega que estas capacidades não são possuídas por todos os humanos. Recém-nascidos humanos, por exemplo, não são racionais, parecem não ser autoconscientes, e não têm sentido de moralidade nem de justiça. Sem dúvida, recém-nascidos humanos podem ter o potencial para desenvolver essas características, mas, recorrer ao argumento da potencialidade cria sérias dificuldades. Se incluirmos seres humanos com potencial para desenvolver as capacidades mentais requeridas, alguns humanos ainda ficarão de fora do âmbito do princípio da igualdade – aqueles com impedimentos mentais amplos e irreversíveis não são potencialmente racionais, enquanto indivíduos.

Por seu teor abolicionista, o argumento de Regan difere dos demais autores, que têm argumentos bem-estaristas. Regan exige uma mudança radical no sistema que nos permite ver os animais como meros recursos. Ele propõe a libertação dos animais de todas as formas de opressão hoje exercidas pelas atividades humanas contra seus interesses fundamentais. Regan critica não apenas as concepções que não aceitam que temos deveres diretos para com os animais, mas, também, o utilitarismo.

Apesar de considerar como ponto forte da concepção utilitarista o fato de fundar-se sobre o princípio da igualdade, Regan diz que no utilitarismo não há espaço para o direito moral igual de indivíduos diferentes, porque o utilitarismo não trabalha com o conceito de valor inerente igual, dos indivíduos. O que tem valor, para o utilitarismo, é a satisfação dos interesses de um indivíduo, não o indivíduo, sujeito dos interesses. Regan usa o conceito de interesses biológicos, ou seja, é possível algo atender a um interesse do sujeito, atender à sua necessidade, mesmo que este não tenha interesse por isso. Primatt, Linzey, Singer e Ryder usam o conceito psicológico (utilitarista) de interesses, ou seja, é preciso que haja um sujeito que tenha interesse por alguma coisa (uma mente), para que se tenha um sujeito digno de respeito moral.

Após reconstituir as concepções das quais discorda (contratualismo e utilitarismo), Regan apresenta sua concepção: defende a idéia do valor inerente, ou seja, todos os sujeitos de uma vida (ser sujeito de uma vida envolve ter memória do passado, autoconsciência, expectativa quanto ao futuro, estar vivo por conta própria, enfim, ter uma vida com autonomia prática) o possuem igualmente, e todos (sujeitos de uma vida) têm um direito igual de serem tratados com respeito. Regan crê que a perspectiva ética dos direitos é a teoria moral mais satisfatória na medida que explica o fundamento de nossos deveres uns para com os outros.

Linzey, assim como Regan, defende a perspectiva dos direitos animais não-humanos de origem divina. Para Linzey, a linguagem dos direitos insiste em que concebamos as exigências dos animais em termos análogos aos dos outros seres humanos. Quando falamos de direitos animais concebemos o que objetivamente devemos aos animais por uma questão de justiça, em função dos direitos concedidos a eles pelo Criador.

Primatt, Singer e Ryder, por sua vez, dão ênfase ao emprego do princípio da igualdade moral no tratamento da dor e minimização do sofrimento de todos os seres sencientes. Fundam a ética nos conceitos de necessidades e interesses.

Jeremy Bentham, fundador da escola reformista utilitarista de filosofia moral, é citado por Singer e Ryder para reforçar sua argumentação. Bentham (seguindo a linha de raciocínio de Primatt) afirma: a questão não é se os animais “são capazes de raciocinar”, nem se “são capazes de falar”, mas, sim. “se são capazes de sofrer”.

Enfim, para os filósofos trabalhados neste ensaio, os argumentos da moral tradicional, alicerçados no especismo não têm fundamentação lógica, nem ética capaz de os sustentar. Nossos hábitos, modo de viver, e a forma de ver e tratar os animais devem ser revistos à luz de sua argumentação.

Referências Bibliográficas:

RYDER, Richard D. Speciesism. In:_____.Victims of Science the use of animals in research [1975]. Revised edition 1983. London: Centaur Press; National Anti-Vivisection Society Limited, 1983, p. 1-14.

FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais: O legado de Humphry Primatt. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL. Salvador, Instituto de Abolicionismo Animal, v. 1, n.1, Jan/Dez.2006, p.207-229.

LINZEY, Andrew. The Theos-Rigths of Animals. In: REGAN, Tom; SINGER, Peter. Animal Rigths and Human Obligations[1976]. New Jersy: Prentice Hall, 1989 Animal Theology. Illinois: University of Illinois Press, 1995, p. 134-138.

REGAN, Tom; The Case for Animal Rights. In: BAIRD, Robert M.; ROSENBAUN, Stuart E. (Eds.) Animal Experimentation: the Moral Issues. New York: Amherst, 1991, p.77-88.

Singer, Peter. Libertação Animal. Porto Alegre: Lugano, 2004.

SINGER, Peter. The significance of Animal Suffering. In: BAIRD, Robert M.; ROSENBAUM, Stuart E. (Eds) Animal Experimentation: the Moral Issues. Amherst, NY: Prometheus Books, 1991, p.57-66.

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