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A justiça zen – Presidente do Tribunal Superior Eleitoral é vegetariano desde os 15 anos.


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Quem é o ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, o vegetariano adepto da meditação que inovou na condução das eleições municipais


Revista Época

Estalo e insight são termos pouco usados para definir uma intensa experiência espiritual. Pois é com essas palavras que o ministro Carlos Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal (STF), descreve como virou vegetariano, da noite para o dia, aos 15 anos de idade. A “energia do cosmos, força maior que nos circula”, ensinou numa manhã de 1958 para o adolescente em Propriá, interior de Sergipe: não é necessário abater um animal, sacrificá-lo, para que seu alimento seja feito todos os dias. A força maior o mudou de tal forma que trocar picanha – que ele amava – por alface não causou indigestão. “Mudar um hábito sem mudar uma pessoa é algo penoso, um sacrifício”, diz Ayres Britto. “Mas para a pessoa transformada é fácil: tudo se encaixa”.

O senhor sente falta de carne? “Não. Quando você experimenta a democracia, faz uma viagem sem volta, não é?”, diz Ayres Britto. “Quando você experimenta o vegetarianismo é a mesma coisa”. Carlinhos, como é chamado por alguns colegas de toga, está longe de ser um ministro com respostas treinadas no ambiente carnívoro da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Capaz de juntar as palavras democracia e vegetarianismo num raciocínio, dificilmente não é chamado de excêntrico ou engraçado. Às vezes, até de doido. “Ele é o ministro mais progressista da história do STF. Culto, alegre e totalmente da paz”, afirma o colega Joaquim Barbosa, seu companheiro freqüentador do Clube do Choro, ponto musical de Brasília.
Aos 65 anos, autor de 11 livros (seis de poesia), Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto é o ministro do STF que exerce no momento a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De acordo com o diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, Claudio Weber Abramo, Ayres Britto é o responsável por mudanças que aumentaram a transparência das eleições. Um exemplo é a norma sobre as declarações de bens. Até este ano, candidatos de vários Estados enviavam listas com seu patrimônio incompletas, sem os valores dos bens, e não eram punidos por isso. Era uma espécie de regalia concedida por alguns Tribunais Regionais Eleitorais, como o do Piauí e o da Paraíba. Antes das eleições, Ayres Britto estabeleceu uma norma que unificou a legislação. Todos os candidatos foram obrigados a declarar o valor de cada imóvel, carro ou terreno comprado ao longo dos anos. “Parece simples, mas foi um grande avanço para as eleições. É uma característica do ministro”, diz Abramo. Na semana passada, ao fazer um balanço das eleições municipais, Ayres Britto defendeu a liberação do uso da internet nas próximas campanhas, até mesmo para doações. Na última eleição, os candidatos foram proibidos de usar a rede.

Ayres Britto teve sua experiência pessoal com as urnas na década de 1980. Ele foi candidato a deputado federal em Sergipe pelo PT, legenda que ajudou a fundar. Teve 23 mil votos, uma expressiva votação, mas o partido não conseguiu o número de votos suficiente para colocá-lo na Câmara dos Deputados. Ayres Britto era um dos militantes sergipanos próximos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Quando Lula ainda corria o país como candidato, gostava de ser recebido por ele no aeroporto de Aracaju. Dizem os amigos que o carro de Ayres Britto era o único do partido com ar-condicionado em todo o Estado. Como presidente da República, Lula indicou Ayres Britto para ministro do Supremo em 2003, numa lista de três nomes para ocupar a vaga deixada por Ilmar Galvão, que se aposentara. “O Lula nem deve lembrar quando eu o buscava no aeroporto”, diz o ministro. Ayres Britto fica visivelmente desconfiado e desconcertado quando um jornalista toca no assunto. “Ele tem receio de que usem sua militância política para tirar sua autoridade em algumas decisões a favor ou contra o partido e o governo. É um ponto fraco em sua trajetória, usado por maldosos”, afirma um político conterrâneo.

Assim que o assunto acaba, Ayres Britto volta a ter o semblante tranqüilo, uma de suas características mais marcantes, cultivada com sessões diárias de meditação. Casado com Rita há 27 anos e pai de cinco filhos, o ministro acorda cedo e medita entre 5 horas e 5h30. Na posição de lótus, como um faquir, em estado de “não-mente”, como gosta de explicar, desliga-se do mundo em um silêncio profundo. “Os minutos valem o mesmo que algumas horas de sono”, diz. Depois, três vezes por semana, ele caminha cerca de dois quilômetros para ajudar a manter o peso de 61 quilos em 1,64 metro de altura. Não que seja difícil para quem só come folhas.

Filho do juiz de Direito João Fernandes com a professora de francês Dalva, o presidente do TSE é o quinto de 11 filhos de uma família de classe média alta. A morte de um dos irmãos, o terceiro dos 11, no fim da década de 60, consumido por um câncer mal diagnosticado no estômago, foi um golpe que marcou sua vida. Durante o ano de 1968, enquanto o mundo transbordava com novos conceitos de liberdade, Ayres Britto estava preso à dor do irmão mais velho. O médico acreditava que ele tinha pólipos no estômago, sem saber do câncer que o consumia. “Ele era uma espécie de líder da família”, diz Ayres Britto. “Dores todos nós temos. Agora, saber virar a página é o grande segredo”.

A boa medicina, de lá para cá, virou uma obsessão. Não por acaso, foi com votos ligados ao assunto que Ayres Britto brilhou no Supremo. Votou a favor do direito da mulher de abortar fetos anencéfalos. “A mulher carrega algo no ventre que jamais será alguém”, disse. Em agosto, ele viveu o momento mais importante de sua vida jurídica. Relator do julgamento sobre a liberação do uso de células-tronco embrionárias, ele preparou seu voto um ano antes, nas férias de julho de 2007, no apartamento no 15º andar que mantém em Aracaju, de frente para o mar. Lá, concentrado e ao som das ondas, preparou um relatório denso e musicalmente eclético (citava Chico Buarque, Ana Carolina e Tom Zé) de defesa ao uso das células. “Foi um voto humanista, de forte sensibilidade com o outro”, afirma o jurista Luís Roberto Barroso. “Foi o melhor momento dele no Supremo”, diz a ministra Carmen Lúcia, outra amiga dentro do STF.

Recentemente, Ayres Britto votou pelo fim do nepotismo, a praga de empregar parentes em cargos públicos de confiança, e pela proibição da candidatura de políticos com ficha suja. “Ele se revelou uma pessoa sintonizada com os anseios da sociedade. Nas questões recentes, ele tem estado no centro dos debates, sem decepcionar”, diz o jurista Barroso. “É uma pessoa com uma visão progressista do mundo, com compromissos democráticos e à esquerda do espectro político, sem se deixar mover por clichês ou palavras de ordem”. Em outra questão difícil, a demarcação das terras indígenas na reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, Ayres Britto surpreendeu. Como relator do caso, ele fez segredo sobre seu voto até a leitura na sessão. Votou de maneira contundente pela demarcação das terras de forma contínua. “Não acredito que o índio atrapalhe o desenvolvimento”, afirma. “Os índios são co-autores da ideologia nacional”. Em um futuro próximo, o ministro terá pela frente outro processo controverso: uma ação que defende a aplicação dos benefícios das uniões estáveis para os casais homossexuais.

O trabalho no STF e no TSE é árduo. São processos volumosos, sobre assuntos variados e carregam a pressão da sociedade por soluções que vão além dos limites da jurisprudência. Ayres Britto atenua as tensões com sua religião própria. “A maior de todas as religiões é o amor. Viver em estado amoroso é a suprema religião”, afirma. “Tenho certeza de que Deus deve estar batendo palma para mim”.

FONTE: Revista Época
Agradecimentos ao leitor Ronaldo Grigolato.

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