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Natal e Veganismo, por uma cristã vegana


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Hoje é dia 16 de Dezembro, última semana do Advento, contagem regressiva para o Natal.

Para muitos a festa perdeu o sentido há tempos e acabou se tornando mais uma festa, com uma quantidade maior de presentes e aproveitando o clima de final de ano e coincidência de diversas festas pagãs e religiosas, confraternizações no trabalho e toda uma rotina ao qual você vai ser arrastado, sendo ou não cristão, tendo ou não tendo uma religião ou uma crença. Para outros – como para mim, que sou cristã, católica – advento e Natal são épocas de reflexão, meditação (e, sim, existe meditação cristã. Vide Santo Ignácio de Loyola e seus exercícios espirituais) e de avaliação pessoal.

Não costumo falar sobre o assunto em meus textos – a não ser quando perguntada ou quando me sinto atingida no meu direito de ter uma religião  – pois eu prefiro, por motivos lógicos, demonstrar que o veganismo pode e deve ser adotado por razões objetivas, universais e independente de crenças religiosas por qualquer pessoa. E que o comportamento ético prescinde de religião, embora não seja incompatível.

Mas esse texto vai tratar de um ponto de vista cristão de uma festa cristã. (Se você não se interessa sobre o assunto, não perca seu tempo. Vou fazer citações bíblicas, inclusive pois, sim, é uma discussão doutrinária).

Infelizmente, os animais são vitimados por todas essas comemorações, tenham elas um objetivo religioso ou não. No caso do Natal, não existe nenhuma obrigação religiosa, não se trata de um ato de sacrifício de animais, mas eles são vitimados por toda a tradição de ceias, almoços, encontros e reuniões. O que se repete no Ano Novo, inclusive, que simplesmente marca o fim de um calendário e é uma data repleta de superstições, inclusive quanto aos alimentos utilizados.

Há quem se declare nessa época contra o Natal e coloque a culpa da ceia na própria data. Eu coloco a culpa numa tradição arraigada – que tem origens muito além de qualquer crença religiosa – de que carnes, ovos e leite são sinônimo de fartura. E de uma condição cultural que atribui qualidades aos alimentos que vão muito além da nutrição e do paladar.

Falando especificamente de catolicismo, não há como negar a influência até mesmo das cozinhas dos mosteiros católicos sobre a gastronomia ocidental, inclusive de alguns maus hábitos e até mesmo algumas distorções. Entre elas, o mito da carne branca como se isenta de sangue ou sofrimento. E, vamos esclarecer desde já uma coisa: não existe NENHUMA proibição de não-consumo de animais ou derivados. É uma questão de avaliação e de escolha contra uma tradição bem pouco fundamentada.

Vide qualquer aniversário, casamento, churrasco de amigos e até um almoço de domingo… Uma ceia vegetariana parece para a maioria simplesmente uma idéia de restrição, o que não é verdade, em absoluto, e tal idéia vem simplesmente de ignorância quanto a possibilidades culinárias do veganismo e falta da devida valorização do assunto pela imensa maioria de escolas gastronômicas.

Deriva de uma falta de costume de reconhecer ingredientes nobres entre os vegetais, encará-los  apenas como acompanhamentos, além de um preconceito bastante incoerente em relação às possibilidades da nutrição. E também do grande problema do veganismo: o conceito social pouco crítico (não julgo que seja sempre uma questão de hipocrisia, já que a imensa maioria sequer reflete sobre o assunto) de que comer carne e derivados animais é necessário, normal e acima de qualquer questionamento ético.

Acho que deveria ser uma obrigação de qualquer cristão minimamente consciente, que comemora o Natal por motivos religiosos, reavaliar seus hábitos e abster-se de produtos de origem animal, resultantes de exploração, conclusão a que se chega após parar de pensar em animais pura e simplesmente como comida. Sem restrições ou sacrifícios, no melhor clima festivo, aproveitando alimentos de origem vegetal. Pinceladas teológicas e muito de conclusão pessoal, adianto.

Inicialmente, eu dificilmente interpreto textos religiosos com sentido literal. Não sou, por exemplo, creacionista se isso quer dizer acreditar que o Universo foi criado em 7 dias com estalares de dedos – mas não acredito em acaso para sistemas organizados e códigos definidos. Então, sim, eu considero metáforas, símbolos e interpretação de texto (pois a Bíblia é uma coletânea de textos). E, quando considero os ensinamentos de Jesus enquanto modelo religioso, acho que ignorar o sentido maior dos ensinamentos e me limitar a atos específicos praticados no contexto da época seria anacronismo, simplesmente. Além disso, qualquer movimento espiritual deve considerar a finalidade daquilo que se pratica, demonstrando o esforço de eliminar as ações julgadas danosas.

Então, a primeira delas se refere ao chamado “Reino”. Tal condição é uma utopia descrita em texto de Isaías na qual um mundo de justiça, eqüidade, profundo conhecimento das verdades espirituais e paz surge sob o governo de uma criança. Nessa metáfora, os conflitos são simbolizados utilizando-se do pobre oprimido, do omisso, do ímpio e também das relações dos animais, de predadorismo e defesa. Há, também, a rejeição a qualquer forma de sacrifício e valorização da oração e elevação espiritual. Embora o chamado Velho Testamento inegavalmente tenha perdido importância para boa parte dos cristãos – principalmente católicos – perante os ensinamentos dos evangelhos, atos e cartas,  comentar o livro de Isaías é essencial. Jesus só é considerado o Cristo por que é identificado como o realizador das profecias desse livro. Messias, Príncipe da Paz e Emanuel , por exemplo, são denominação que surgem desse texto e são aplicadas por cristãos. Destaco aqui os seguintes trechos:

“Mas julgará com justiça aos pobres, e repreenderá com eqüidade aos mansos da terra; e ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará ao ímpio. E a justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade o cinto dos seus rins. E morará o lobo com o cordeiro, e o leopardo com o cabrito se deitará, e o bezerro, e o filho de leão e o animal cevado andarão juntos, e um menino pequeno os guiará. A vaca e a ursa pastarão juntas, seus filhos se deitarão juntos, e o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de peito sobre a toca da áspide, e a desmamada colocará a sua mão na cova do basilisco. Não se fará mal nem dano algum em todo o meu santo monte, porque a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar. (Isaías 11,4-9)

“Assim diz o SENHOR: O céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés; que casa me edificaríeis vós? E qual seria o lugar do meu descanso? Porque a minha mão fez todas estas coisas, e assim todas elas foram feitas, diz o SENHOR; mas para esse olharei, para o pobre e abatido de espírito, e que treme da minha palavra. Quem mata um boi é como o que tira a vida a um homem; quem sacrifica um cordeiro é como o que degola um cão; quem oferece uma oblação é como o que oferece sangue de porco; quem queima incenso em memorial é como o que bendiz a um ídolo; também estes escolhem os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações.”

Pois bem. A Bíblia tem o período do Jardim do Éden – ideal de perfeição e comunhão com Deus/Jeová – em que foram expressamente dados como alimentos os frutos e as ervas (Gênesis 1, 29-31); o chamado domínio dos animais é mostrado como forma de cuidado, de responsabilidade, não exploração, como parte da criação como algo bom. Não existe predadorismo, não existe dor. O consumo de carne só é citado após a expulsão do paraíso (com a figura de Abel), mas a permissão expressa para consumo de carne surge apenas após o dilúvio (épocas de escassez, portanto), cercado de preceitos Kosher que são, via de regra, preceitos de higiene. Os procedimentos para o sacrifício de animais também surgem nesse período, sendo que há historiadores que defendem que mesmo o conflito Caim e Abel é simbólico e que Caim, agricultor e que oferece vegetais a seu Deus, não é senão a personificação de rituais pagãos e por isso é marginalizado no texto monoteísta. Entretanto, é visível que o sacrifício de animais perdeu a importância em termos religiosos e até mesmo espirituais. Sacrifícios animais não são realizados sequer na religião judaica, que considera apenas o que nós católicos chamamos de velho testamento. Isso porque existe um movimento forte no judaísmo (e não estou falando de movimentos ultra-ortodoxos, que são exceção) de que a oração deve ser meditativa, além também de um aspecto histórico da destruição do templo. Para quem considera o novo testamento e aceita Jesus como o Cristo/Messias, o sacrifício de animais foi EXPRESSAMENTE abolido com a instituição da eucaristia e, nota-se, também que é proibido no Reino de elevação espiritual a ser perseguido. A Paixão de Cristo é o sacrifício perfeito, rememorado na missa, que é um sacrifício incruento e as ações individuais devem ir muito além da ritualística.

Não bastasse, encontramos passagens em Daniel que relatam vegetarianismo (indicando que os que não consumiram carne e se mantiveram abstêmios se tornaram mais fortes) e todo o texto simbólico-profético de busca de nova ligação/comunhão com Deus que está em Isaías, afasta novamente o predadorismo e chega a dizer que é crime matar um animal. Como é pra frente que se anda, abolir sacrifícios e consumo de animais estão, sim, entre as condutas necessárias para o chamado Reino da Paz (que é ideal e, portanto, deve ser perseguido).

Parece-me evidente que a situação de exploração e predadorismo não é desejável, não deve ser mantida e sua abolição tem que ser perseguida como um ideal. O que é diferente de “concordo, respeito e não consigo, então nem tento”. Tamanha violência, desnecessária e hoje mais do que nunca sem qualquer suporte no argumento de sobrevivência, é incompatível com esse mundo que desejamos. E todos os textos bíblicos de sentido de elevação pessoal colocam a responsabilidade das escolhas feitas sobre as próprias pessoas. O compromisso com um comportamento pacífico é pessoal, não é algo que cairá do céu. Tal compromisso inclui a ceia de Natal, refeições diárias, escolhas na hora de comprar roupas, freqüentar eventos, entre outros. Os animais, seres sencientes e privados de direitos básicos atinentes a sua própria natureza quando são considerados mera propriedade, são oprimidos também, tanto quanto inúmeros humanos. E uma injustiça não dá suporte a outra.

Para quem diz que o vegetarianismo e o veganismo seriam incompatíveis com o pensamento religioso, lembro sempre de Anne Kingsford – a chamada “mãe do vegetarianismo moderno”. Co autora de um livro puramente religioso chamado “The Perfect Way, the findind of Christ”, Anne  era cristã e os preceitos citados no seu livro mais importante para o movimento vegetariano, “The Perfect Way in Diet”, estão repletos de princípios ético-religiosos além de uma análise nutricional e fisiológica da questão.

Se desejamos esse reino e se acreditamos num messias, porque nos omitir e nos deixar levar pela forma como o  mundo é, dando suporte moral e financeiro a esse tipo de situação?

Diversas vezes me vi confrontada com a clássica pergunta – ou acusação, dependendo de onde parte – de por que dar  atenção aos animais se há tantos humanos em situação de penúria. Eu não me vejo no direito de negar a importância dos problemas sociais e contribuir tanto quanto possível para sua resolução, assim como oferecer ajuda a alguém que precisa e pede por ela. Entretanto, eu já tenho em minhas mãos a solução para boa parte das injustiças inflingidas contra os animais, bastando para isso mudar alguns hábitos pessoais (sem nunca desconsiderar o poder dessa decisão a longo prazo, sendo tomada por mais e mais pessoas, afetando mercados, produção e, principalmente, valores sociais).  Então, porque insistir nesse péssimo hábito se isso não resolve os problemas humanos, já que não existe dicotomia aí? É simplesmente um problema de mais simples resolução, pro qual já existe solução: o veganismo. De verdade, julgo o veganismo uma parte indissociável de um ideal de compaixão e amor universais. Assim, devolvo a pergunta: por que manter a situação de injustiça contra os animais e se preocupar apenas com os humanos?

No novo testamento, o amor (“Ágape”, que também pode ser traduzido por caridade ou amor universal, em conjunto com “Filia” ou fraternidade) assume função primordial. Através dos tempos, com a evolução cultural, esse amor se estendeu a parcelas que não foram expressamente citadas na Bíblia como, por exemplo, escravos (por dívida, por guerra, índios, negros…). Por que, então, muitos cristãos se fiam em argumentos como a “inexistência da alma dos animais” para continuar financiando ou promovendo danos físicos e psicológicos – e não espirituais – a eles? O ponto essencial da análise dos animais, para um cristão, deve repousar sobre a inequívoca verdade de que eles são parte da criação.

A chamada Justiça Divina se extende a toda a criação, e textos bíblicos também dão suporte a esse tipo de afirmação:

“Vossa justiça é semelhante às montanhas de Deus, vossos juízos são profundos como o mar. Vós protegeis, Senhor, os homens como os animais.” (Salmos 36, 6)

“E por seu intermédio reconciliar consigo todas as criaturas, por intermédio daquele que, ao preço do próprio sangue na cruz, restabeleceu a paz a tudo quanto existe na terra e nos céus.” (Colonossenses 1, 20)

“Eu quero a misericórdia e não o sacrifício” (Mateus 9,13, 12,17).

“Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus.” (Mateus 5, 48)

“Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6, 10)

“Aquele que souber como fazer o bem, e não o faz, peca” (Tiago 4, 17)

“Não destruas a obra de Deus por questão de comida. Todas as coisas, em verdade, são puras, mas o que é mau para um homem é o fato de comer provocando um escândalo.” (Romanos 14, 20)

Não bastasse, há que se considerar todos os reflexos do vegetarianismo: não só a ética com os animais como o melhor aproveitamento energético de alimentos com a utilização direta de grãos, os reflexos ambientais, sustentabilidade, etc. Trata-se de medida necessária pra preservação do planeta e da própria humanidade.

Então, qual o sentido cristão, espiritual, de se manter uma mesa com animais como perus, porcos, galinhas, bois, peixes e outros tantos que apenas são de uma espécie diferente da nossa. Não está a centelha divina presente em todos os animais e, se podemos optar por não causar sofrimento e essa parcela da criação tendo inclusive saúde perfeita e prazer no paladar, porque insistimos nisso?

Os vegetais são a base da alimentação de todos os seres vivos, desprovidos de sistema nervoso ou senciência. São os vegetais que mantém animais e humanos e é apenas deles que nosso corpo material não prescinde.

Os animais estão representados no presépio como símbolos de cuidado, de veneração de toda a criação pelo nascimento do Messias , não como comida.

A realidade desses animais colocados à mesa é tétrica, e não vemos isso porque insistimos em tapar nossos olhos, nossos ouvidos e na nossa própria insensibilização em relação a algo divulgado como corriqueiro. Mudem! A aceitação de princípios cristãos tem a ver com aprender, aceitar e colocar em prática ensinamentos diversos!

A partir do momento que reconhecemos animais como indivíduos e como parte da criação, a partir do momento em que desejamos um mundo de paz, harmonia e boa vontade, por que festejar o nascimento de quem julgamos ser o Príncipe da Paz insistindo em tanta violência? E o nosso compromisso com ideais cristãos, onde vai parar na hora de se sacrificar por alguns dias a fim de mudar hábitos, aprender novas formas de se alimentar bem e viver uma vida plena e completa sem a necessidade desses itens?

Então, vamos celebrar um Natal mais pleno, em comunhão com toda a criação, começando – se você ainda não começou – com uma ceia vegana, marcando sua mudança de consciência

E, pra facilitar, vão aí algumas dicas.

Feliz Natal a toda a criação e aos homens de boa vontade!

Renata Octaviani Martins
Culinarista Vegana
www.vegvida.com.br

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