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Rio Grande do Sul e Creta: nem tão diferentes assim


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por Rafael Bán Jacobsen

1 – Preâmbulo desinteressantíssimo (como todo o resto do texto)

Existem escritores e escrevinhadores.

Os escritores produzem textos buscando extrair da linguagem sua máxima potência estética, estabelecendo múltiplas camadas de significados para as frases, dotando seus períodos de sonoridade musical. Escritores tratam de temas universais, das angústias, sensibilidades e percepções humanas, sempre perscrutando-as sob novos e inusitados prismas. Escritores criam mundos.

Os escrevinhadores, ao contrário, produzem textos quaisquer. Basta fazer um poeminha de quatro estrofes, com quatro versos em cada, com rimas pobres alternadas, falando sobre a devastação da Amazônia, sobre a mais recente dor-de-cotovelo ou homenageando alguma personalidade (já morta, de preferência). Outra possibilidade, para aqueles que têm preguiça de montar rimas, por mais simplórias que sejam, é escrever uma crônica a respeito de uma trivialidade qualquer: a indignação pessoal com a corrupção na política, o nascimento de um filho (vale também neto, sobrinho, afilhado) ou até mesmo a última viagem feita. Se for internacional, melhor ainda.

A tendência de escrevinhadores desperdiçarem papel contando prosaicas passagens de suas viagens pode ser explicada como um trauma persistente, gerado no passado distante, ainda nos bancos escolares, quando a professora do primário solicitava à classe a famigerada redação “Minhas Férias”. Outra possível explicação é o prazer pernóstico de alardear, na pequena província, o fato de ter pisado em países mais civilizados ou em lugares ainda mais exóticos do que esta nossa taba de nambiquaras.

Digo tudo isso para prevenir aos leitores que este é um texto de escrevinhador, embora aquele que o redigiu pretenda ser escritor. Por que o escrevi, então? Simples: não foi por vontade própria, mas por pedido dos demais nambiquaras. Quando um nambiquara deixa a tribo por algum tempo para viajar, é quase um dever fazer o patético relato da empreitada. Se o nambiquara andarilho se negar, tacape nele! Mas pode ser até divertido: é como distribuir espelhinhos e outros badulaques para a tribo inteira após breve contato com exploradores recém-chegados em caravelas.

Assim, o texto que se segue trata de impressões colhidas em minha viagem à ilha de Creta. Uma bobagem, portanto. Que o bom leitor, aquele que preza a legítima literatura, encerre a leitura por aqui.

2 – O passado e o presente de Creta

Creta é a maior ilha da Grécia. Está no sul do mar Egeu e é a segunda maior ilha do mar Mediterrâneo oriental e a quinta maior de todo aquele mar. Foi o berço da civilização minóica, entre 2700 a.C. e 1450 a.C. Teve como principal centro a cidade de Cnossos. O termo “minóico” deriva de Minos, título dado ao rei de Creta.

Baseando-se em descrições da arte minóica, essa cultura é freqüentemente descrita como uma sociedade matriarcal voltada para o culto à deusa. Ainda em seu princípio, esculturas de uma “deusa-mãe” tornaram-se freqüentes. Também se destacou a imagem do touro, reproduzida em pinturas e em obras arquitetônicas (chifres de pedra assinalavam os locais sagrados), que pode ter sido associada à fertilidade. Cerimônias religiosas são descritas em pinturas. Santuários foram identificados em cavernas e montanhas, bem como no interior dos próprios palácios, o que pode atribuir aos reis alguma função sacerdotal. Em muitas cerimônias religiosas, o animal objeto de adoração, o touro, era oferecido em sacrifício, como pode ser visto na Fig.1, que é o detalhe de uma urna funerária resgatada do sítio arqueológico de Cnossos.

Mas o touro não teve importância apenas na esfera religiosa. Um dos espetáculos mais populares em Cnossos era uma versão sui generis das modernas touradas, vaquejadas ou farras do boi. Em um amplo pátio, uma fila de toureadores se punha diante de um touro em disparada. Quando o animal estava a pouco centímetros, o sujeito apoiava-se colocando a mão nos chifres e, empurrando a cabeça do touro para baixo, ganhava impulso para dar uma acrobática cambalhota sobre o dorso do bicho, indo cair em pé atrás dele. E assim sucessivamente, um toureador após o outro, para delírio do público palaciano. Os reis e rainhas adoravam a tradicional tourada minóica. Tal patacoada pode ser vista na Fig.2, um antigo afresco do palácio de Cnossos.

Na mitologia cretense, a figura do touro também é central. Antes de Minos tornar-se rei, ele pediu ao deus grego Poseidon por um sinal, para assegurar-lhe que ele, e não seu irmão, assumiria o trono. Poseidon concordou em enviar um touro branco na condição de que Minos sacrificasse o touro de volta ao deus. De fato, um touro de incomensurável beleza saiu inexplicavelmente do mar. Minos, após vê-lo, achou-o tão belo que, ao invés dele, sacrificou outro touro, esperando que Poseidon não notasse. Poseidon ficou furioso quando notou o que havia sido feito e fez com que a esposa de Minos, Pasífae, fosse dominada pela loucura e se apaixonasse pelo touro. Pasífae foi até Dédalo em busca de assistência, e ele inventou uma maneira de ela satisfazer suas paixões. Ele construiu uma vaca oca de madeira e encobriu Pasífae com pele de vaca para que o touro pudesse montar nela. O resultado dessa bizarra união zoófila foi o Minotauro. O Minotauro tinha corpo de homem e a cabeça e cauda de touro. Era uma criatura selvagem, e Minos, após receber um conselho do Oráculo de Delfos, mandou Dédalo construir um labirinto gigante para conter o Minotauro. Este foi localizado sob o palácio de Cnossos. Porém, ocorreu que Androceu, filho de Minos, foi morto pelos atenienses. Para vingar a morte de seu filho, Minos declarou guerra contra Atenas e venceu. Ele então ordenou que sete jovens e sete damas atenienses fossem enviados anualmente para serem devorados pelo Minotauro. Quando o terceiro sacrifício veio, Teseu voluntariou-se para ir e matar o monstro. Ariadne, filha de Minos, apaixonou-se por Teseu e o ajudou entregando-lhe um novelo de linha de costura para que ele pudesse sair do labirinto. Teseu matou o Minotauro com uma espada mágica que Ariadne havia lhe dado e liderou os outros atenienses para fora do labirinto.

A antiga civilização da ilha de Creta cresceu literalmente montada no touro: era touro nos esportes, era touro no sacrifício religioso, era touro nas lendas, era touro na mesa. Uma verdadeira fixação.

O declínio da civilização minóica começou com a explosão de um vulcão ao norte, localizado na ilha de Santorini, que fez com que terríveis tsunamis arrasassem os principais portos costeiros de Creta, assim como seus principais mercados, facilitando assim a chegada de outra tribo indo-européia, os dórios, oriundos da Grécia continental, que conquistaram os decadentes minóicos.

Hoje, em Creta, a figura dos bovinos também é bastante presente, em especial nos inúmeros e fedidos açougues da ilha. Na Creta de hoje, esses animais não são mais utilizados em práticas religiosas ou desportivas, tampouco inspiram a imaginação do povo. Não há mais rainhas loucas para praticarem o sexo com eles. Hoje, lado a lado com várias outras espécies, os bovinos aparecem já mortos e aos pedaços nas vitrines dos açougues (sim, em Creta, açougues têm vitrines) ou então nos refrigeradores que os comerciantes colocam nas calçadas poeirentas para atrair (?) o público. A Fig.3 e a Fig.4 ilustram bem essa ainda latente fixação do povo cretense.

3 – O passado e o presente do Rio Grande do Sul

O Rio Grande do Sul é uma das 27 unidades federativas do Brasil. Localizado na Região Sul, possui como limites o estado de Santa Catarina ao norte, o oceano Atlântico ao leste, o Uruguai ao sul, e a Argentina a oeste.

O estado, desde o começo de sua história, apresentou uma economia de caráter fundamentalmente agropecuário, tendo como importante matriz a atividade ligada à criação de gado e à produção de charque na região da campanha. A consolidação das charqueadas, grandes propriedades rurais de caráter industrial, só se dá no século XIX. O gado, matéria-prima, provinha de toda a região da campanha rio-grandense e era fruto da multiplicação de exemplares trazidos pelos espanhóis para a Banda Oriental no início do século XVII. Na época, o número de abates ficava em torno de 400 mil cabeças de gado por ano. Simões Lopes Neto, na Revista do Primeiro Centenário de Pelotas, editada em 1911, comenta que, até aquela data, haviam sido abatidas 45 milhões de reses. O Rio Grande do Sul se ergueu sobre incontáveis carcaças de boi. O tradicional churrasco gaúcho é uma velha herança desses tempos.

Além disso, os gaúchos há muito apreciam mostrar-se como grandes cavaleiros. Entre outras atividades relevantes, encilham cavalos, aboletam-se sobre os mesmos e, com esporas, arreios e gritos, os forçam a perseguir seus primos não tão distantes, os bovinos. Na popular prova do laço, um peão deve laçar um bezerro pelo pescoço, manter a corda esticada, pular do cavalo e amarrar três patas de forma que ele fique imobilizado. Depois, o laçador deve montar sobre ele, para delírio do público provinciano. Nas competições mais prestigiadas, como aquelas levadas a cabo durante as grandes feiras agropecuárias do Rio Grande do Sul, é comum autoridades se fazerem presentes para a entrega dos prêmios. Nossos governantes adoram a tradicional prova do laço.

Assim como em Creta, o boi é idolatrado no Rio Grande do Sul: é base da vida econômica, desportiva, cultural, molda hábitos e costumes. Assim como em Creta, os gaúchos têm fixação por bovinos. Assim como em Creta, apesar de tal adoração, ou talvez exatamente por causa dela, os bovinos sempre levam a pior. Os gaúchos querem se divertir às custas deles, querem ganhar dinheiro com eles, querem comê-los, querem vestir seu couro. Por vezes, a fixação recai em uma espécie de “síndrome de Parsífae”. O ato sexual com animais, bovinos e outros, é uma verdadeira instituição gaúcha, muito comum ainda, especialmente na zona rural. A prática recebe até uma tradicional designação: barranquear.

No final das contas, Creta e Rio Grande do Sul não são tão diferentes assim.
Cadê o nosso vulcão? Cadê o tsunami? Cuidado, nambiquaras!

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