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E eles realmente acreditam


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por Anderson Santos
Continuo minhas viagens pelas terras dos kiwis (o animal, não a fruta), apesar de eu até agora não ter visto um. O que estou vendo na verdade são dezenas e dezenas de criações de gado e ovelhas, ocupando áreas que antes eram de plantas nativas e agora são pastos. Aqui na Nova Zelândia, por sua população humana tão pequena em tão ampla área, em tão belas paisagens, é difícil olhar para esses animais e se perguntar “será que eles estão felizes?”, pois a resposta parece óbvia: “quem não estaria feliz aqui?”.

E assim em cada parada tem vários artigos de lã merino, leites e queijos à vontade. E todos os clientes comprando com satisfação, pois viram as vaquinhas e as ovelhinhas logo ali na fazenda vizinha.

Eu com minha bolsa térmica azul na  mão esquerda, cheia de comida sem nenhum ingrediente animal, pois sei que não dá pra comprar nada nesses lugares exceto batata frita e e às vezes, leite de soja com chocolate e algumas frutas.
Na outra mão minha máquina fotográfica, tirando fotos enquanto reflito sobre a cultura daquelas pessoas e como ela difere da minha própria cultura.

E no meio da estrada, em um ônibus de turismo com comentários nos auto-falantes durante toda a viagem, o motorista levanta novamente o problema sobre animais que são considerados pragas. Um deles é o possum australiano, onde aqui tem uma população estimada de 40 milhões de animais, num lugar onde antes era inexistente.

Para lidar com essa superpolução há um estímulo cultural de que a sociedade tome partido e faça o controle por si mesmo, e esse motorista fez sua parte, dizendo várias coisas desconcertantes e finalizando com a seguinte frase: “Salve uma árvore, mate um possum”. Fiquei horrorizado, e duas mulheres também. Na parada seguinte ouvi elas reclamando ao motorista e entrei na conversa. Falei que se trocássemos possum por um cachorro ou gato todos ficariam horrorizados, ele se desculpou e conversamos bastante, mas depois daquilo percebi que era uma cultura geral, orgulho por exterminar possums. Vendo inclusive um cartaz em Milford Sound, uma das principais atrações turísticas da Nova Zelândia, com uma foto de um homem sorridente segurando um possum morto em uma armadilha, estimulando esse tipo de atitude. Além disso comecei a ver que cada vez mais que eu me aproximava da costa oeste, mais e mais produtos com pele de possum estavam disponíveis, algumas lojas especializadas, até eu chegar em um local chamado Bushman Place, onde sua especialidade é torta de possum e outras carnes de animais “selvagens”.

O local era um show de horrores, caçador e tentativa de comediante o dono do lugar tinha posto, além das cabeças de animais como troféu de caça e espingardas na parede, vários cartazes jocosos como “Gato, a nova carne branca”, piadas machistas. e uma área de e-mails impressos com reclamações de pessoas que assim como eu, ficaram ofendidas com aquele lugar, e ele com suas respostas infames como “não sabia que a Nova Zelândia tinha virado a Cambodia e temos que nos preocupar com os humanos, opa, espera lá, é só um possum!”.

Cobrindo os assentos, peles de diversos tipos de animais para o “conforto” dos clientes.

No menu, coisas como hambúrguer de Bambi, traga o possum que você atropelou e ganhe uma refeição grátis com a carne dele, e outras pérolas para fazer os onívoros mais sensíveis perderem o apetite.

Ao lado do menu na parede a cabeça de um manequim humano como um prêmio de caça com a frase “cliente complicado, 1993”.

Saí do estabelecimento com um nó na garganta, e ao olhar para a porta uma placa “se você não tem senso de humor, não deveria estar aqui”.

Desconcertado depois de tanta informação ofensiva, olhei para fora e vi alguns cerdos, olhei para o outro lado e vi um animal que lembra um carneiro mas selvagem, e percebi que eles criavam vários animais selvagens para seu menu “especializado e cheio de humor”.

Tive aquela vontade de quase chorar ao pensar “como alguém é capaz de matar um animal como esse?”.

Voltei ao ônibus e comecei a refletir sobre o que tinha acabado de ver, nem um e-mail de reclamação para o estabelecimento adiantava pois iria virar mais uma piada daquele proprietário sem escrúpulos. Mas afinal, o que o leva a ser tão sem-coração? E o que leva a maioria das pessoas levarem aquilo como piada? Lá foi a parada que mais vi as pessoas comendo carne, me lembrou uma churrascaria brasileira, e voltei meus pensamentos aos animais que consideram como alimento e as conversas que já tive sobre isso, e me lembrou uma conversa de ontem com um amigo meu daqui, ex-vegano.

Ele me mandou uma mensagem dizendo que agora não era mais vegano, só vegetariano. Perguntei o porquê e ele respondeu “estou tomando leite orgânico, eles tratam as vacas bem e elas gostam de ser ordenhadas, e elas não precisam engravidar para dar leite”.
Pasmo com uma resposta tão inocente, respondi que os dados que eu tenho da indústria leiteira no Brasil é que elas precisam engravidar sim. Por questões econômicas os machos são descartados ou viram vitela, as fêmeas viram vacas leiteiras e assim que elas não forem mais lucrativas, todas, sem exceção, serão mortas.  Pela quantidade excessiva de leite muitas desenvolvem doenças mamárias. Além do que o leite é um alimento totalmente desnecessário.

E voltando à memória as fazendas em lugares paradisíacos e os animais vivendo suas vidas tranqüilamente, percebi que é aquilo que as pessoas querem acreditar, até as pessoas da indústria querem que você acredite pois é exatamente aquilo que elas mesmas acreditam. Para elas, elas não estão sendo cruéis, apenas práticas, pois tudo aquilo é necessário. Coisificando os animais, generalizando, chamando-os de praga, excluindo do processo os animais que são considerados perdas. elas só estão fazendo aquilo que acham ser correto e justo.

E as outras pessoas acreditam que estão fazendo o bem ao consumirem tudo aquilo, fazem piadas para descontrair e aprendem a ignorar os conflitos mentais que são impostos sobre a ética de matar e não matar. Como uma garota no restaurante ao ver os cerdos “Oh meu deus, eles tem bambis!”, e seus amigos respondendo rindo “Bambi burguer!” referendo-se ao menu. “Eu sei, é triste” disse por fim e foi correndo ver os cerdos, quando provavelmente comeu algum deles minutos antes.

A cultura baseada na carne, a cultura vegetariana indiana baseada no leite, a cultura dos caçadores, tudo aquilo que eu não acredito, mas eles acreditam: A criação animal de forma humanitária.

Afinal se a vaca produz leite e as galinhas põem ovos, porque não consumi-los e tratar bem os animais que os produzem?

E eles realmente acreditam.

Daí eu normalmente pergunto:
– Se um passarinho fez um ninho e botou ovos na árvore atrás da sua casa, você pegaria seus ovos?
-Não
-Por quê?
-Por que é dele
-Então por que da galinha as pessoas acham certo pegar?

E assim as pessoas normalmente começam, aos poucos, a duvidar.

Afinal, não existe liberdade até que eles sejam realmente livres como um passarinho. E não tem nada mais humano do que apreciar a beleza de um pássaro em pleno vôo.

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