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Peter Singer apóia a vivissecção: por que você está surpreso?


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Este artigo complementa o que publicamos ontem (02/09/2013):
“Peter Singer, autor do clássico livro “Libertação Animal”, não acredita na libertação animal”

Peter Singer apóia a vivissecção: por que você está surpreso?

© Gary L. Francione (texto original, em inglês) | © Tradução: Regina Rheda | © 2008 Ediciones Ánima

Texto pertencente ao Blog pessoal de Gary Francione.
29 de novembro de 2006.

Em 26 de novembro de 2006, o jornal The Sunday Times (UK) publicou que, num documentário da BBC, Peter Singer, descrito pelo The Times como “o pai do moderno movimento pelos direitos animais” se encontra com Tipu Aziz, um vivisseccionista de Oxford que usa primatas em suas pesquisas sobre a doença de Parkinson. Aziz informa Singer de que ele induz parkinsonismo em primatas e alega que sua utilização de 100 macacos ajudou 40.000 humanos. Singer responde:

“Bem, eu acho que, num caso como esse, está claro que eu teria de concordar que foi um experimento justificável. Eu não acho que você deveria se criticar por isso, desde que—e o especialista nisso é você, não eu—não tenha havido nenhum outro meio de se fazer essas descobertas. Eu entendo essa pesquisa como justificável, sim.”

Até agora, recebi 64 e-mails de defensores dos animais dos EUA, Grã-Bretanha e outros lugares, expressando incredulidade e espanto com relação à posição de Singer. Quase todo mundo começa a mensagem com alguma expressão de pasmo do tipo: “Você pode acreditar no que Singer falou?”.

Minha resposta é simples: Por que você está surpreso?

Se você ler o que Peter Singer vem escrevendo há 30 anos, está absolutamente claro que ele considera moralmente permissível o uso de não-humanos—e humanos—na vivissecção. De fato, Singer rejeita explicitamente os direitos animais e a abolição da exploração animal; ele não acha que comer animais ou produtos de origem animal seja, em si, moralmente errado; ele afirma que podemos ser “onívoros conscienciosos”; ele alega que nós podemos ter relações sexuais “mutuamente satisfatórias” com animais e que é moralmente permissível matar crianças deficientes.

Em resumo, em vez de perguntar “você pode acreditar no que Singer falou?”, é mais apropriado perguntar: Alguém pode, por favor, explicar como foi que Singer virou o “pai do moderno movimento pelos direitos animais”?

Singer é um utilitarista. Ele afirma que o que é certo ou errado em qualquer situação depende apenas das conseqüências. Se matar 100 macacos for salvar 40.000 humanos, então a ação é moralmente justificável. Singer rejeita explicitamente a noção de direitos animais, a qual nos proibiria tratar aqueles 100 macacos exclusivamente como meios para nossos fins. Mas Singer também pensa que seria apropriado usar humanos com graves doenças mentais nessa situação porque seria especista preferir não-humanos àqueles que ele vê como humanos situados de maneira semelhante. Então, já de saída, Singer promove uma posição que está em total desacordo não só com a posição dos direitos animais, mas também com os princípios comumente respeitados dos direitos humanos, e que, na verdade, é consistente com a visão dos doutores nazistas que usavam humanos “defeituosos” em experimentos.

Singer afirma que, na maioria dos casos, os animais não têm interesse em sua existência continuada, ou seja, não têm interesse em continuar a viver. Portanto, o nosso uso, em si, dos animais não levanta uma questão moral; o que importa é o nosso tratamento dos animais. Singer diz isso explicitamente em vários lugares, inclusive no livro Animal Liberation [publicado no Brasil com o título de Libertação Animal]. Singer defende a idéia de que os animais, em sua maioria, não têm consciência de si mesmos e não têm nem uma “existência mental contínua”, nem desejos para o futuro (p. 228). Um animal pode ter interesse em não sofrer, mas, como ele “não é capaz de apreender o fato de que tem ‘uma vida’, no sentido que requer um entendimento do que seja existir durante um período de tempo”, o animal não tem nenhum interesse em continuar a viver nem em não ser usado como recurso ou propriedade dos humanos (228-29). Os animais não se importam se os criamos e os matamos para comê-los, se os usamos em experimentos, ou se os exploramos como nossos recursos de qualquer outra maneira, contanto que eles tenham uma vida razoavelmente agradável. Segundo Singer, como os animais não têm qualquer interesse em suas vidas per se, “não é fácil explicar por que a perda para o animal que é morto não é, de um ponto de vista imparcial, tornada boa por meio da criação de um novo animal que levará uma vida igualmente agradável” (229). Embora Singer critique as fazendas de criação industrial intensiva, ele mantém que pode ser moralmente justificável comer animais “que tenham uma existência agradável em um grupo social adequado a suas necessidades comportamentais, e depois sejam mortos de modo rápido e indolor” (229-30). Ele declara que “pode respeitar pessoas conscienciosas que tomam o cuidado de comer carnes provenientes apenas desses animais” (230).

No livro mais recente de Singer (em co-autoria com Jim Mason), The Way We Eat: Why Our Food Choices Matter [publicado no Brasil com o título de A Ética da Alimentação – Como Nossos Hábitos Alimentares Influenciam o Meio Ambiente e o Nosso Bem-Estar], Singer argumenta que podemos ser “onívoros conscienciosos” e explorar os animais eticamente se, por exemplo, optarmos por comer apenas os animais que tiverem sido criados e mortos “humanitariamente”.

A mensagem de Singer é clara: pode ser preferível ser vegano ou vegetariano por causa dos abusos das fazendas de criação industrial intensiva. Mas ele não tem — e nunca teve — objeção a matarmos animais para comê-los.

Se você tiver qualquer dúvida a esse respeito, leia a entrevista de Singer na edição de outubro da revista bem-estarista Satya. Nas próprias palavras de Singer:

“Eu acho que as pessoas estão enganadas se estiverem pensando que eu diluí ou abrandei aquele argumento ético subjacente. Agora, outras pessoas supõem, incidentalmente, que no Animal Liberation eu disse que matar animais é sempre errado e que este é, de alguma forma, o argumento para se ser vegetariano ou vegano. Mas, se elas voltarem ao Animal Liberation e derem outra olhada, elas não vão encontrar esse argumento.”

Singer deixa claro que ele enxerga o problema como sendo os abusos da criação intensiva industrial. Uma vez que tornamos o processo mais “humanitário” e tratamos do problema do sofrimento de forma a satisfazer os critérios utilitaristas de Singer, podemos então voltar a comer animais. Singer acha que é um erro ser “fanático demais quanto a insistir numa vida puramente vegana”. Questionado sobre seu próprio veganismo, ele responde: “Ah, não há a menor dúvida quanto a isso: sou impuro”.

Singer não apenas não vê qualquer problema inerente ao fato de comermos animais e produtos de origem animal, como também não vê qualquer problema em termos contato sexual com animais não-humanos — de novo, contanto que ajamos “humanitariamente”. No sítio de pornografia lightNerve.com, “Nosso Pai” nos diz:

“Mas, sexo com animais nem sempre envolve crueldade. Quem nunca participou de uma ocasião social interrompida pelo cachorro da casa agarrando as pernas de um convidado e esfregando vigorosamente seu pênis nelas? O anfitrião normalmente desencoraja tais atividades, mas, em privado, nem todo mundo tem objeção a ser usado ou usada por seu cachorro dessa maneira e, de vez em quando, atividades mutuamente satisfatórias podem ocorrer.”

Em The Way We Eat, Singer e Mason contam que trabalharam durante um dia numa granja de perus, “coletando sêmen e inserindo-o nas peruas”. Eles capturavam e retinham os perus enquanto outro funcionário “espremia o orifício do macho até que ele se abrisse e o sêmen branco jorrasse para fora. Usando uma bomba a vácuo, ele aspirava o sêmen para uma seringa”. Singer e Mason tinham, então, que “quebrar” a fêmea, o que envolvia reter a ave “de modo que a traseira fique levantada com a cloaca aberta”. O inseminador introduzia um tubo na fêmea e, por meio de uma golfada de ar, inseria o sêmen dentro do oviduto da ave. Então, aparentemente, a versão de Singer da “libertação animal” significa que podemos infligir dano aos animais a fim de satisfazer nossa curiosidade quanto aos mecanismos da exploração animal.

Finalmente, Singer defende posições que a maioria de nós acha inaceitáveis no que concerne aos direitos humanos básicos. Um exemplo (dentre muitos) em Practical Ethics [publicado no Brasil como Ética Prática] é que Singer discute se é moralmente admissível matar um bebê que nasceu com hemofilia. Ele mantém que, embora a questão seja complicada, podemos defender que é admissível matar o bebê se este for o único meio de seus pais terem, depois, outro filho “normal” porque “quando a morte de um bebê deficiente leva ao nascimento de outro bebê com melhores prospectos de uma vida feliz, a soma total de felicidade será maior se o bebê deficiente for morto” (186). Embora essa atitude trate crianças humanas como itens “substituíveis”, Singer afirma que é possível argumentar que os bebês são semelhantes aos não-humanos que não têm consciência de si mesmos, e que é aceitável matá-los. Ele alega que “matar um bebê deficiente não equivale, moralmente, a matar uma pessoa. Muito freqüentemente, isso não é errado, em absoluto” (191).

Eu poderia continuar dando exemplos que demonstram que as idéias de Singer não têm nada a ver com direitos animais, nem com o que a maioria de nós considera uma concepção aceitável dos direitos humanos. Mas há uma coisa positiva que você pode dizer sobre Singer: ele nunca tentou esconder suas posições. Portanto, eu não consigo entender como é que alguém pode ficar surpreso com os comentários dele sobre o uso que Aziz faz dos macacos em Oxford.

Na entrevista da Satya, Singer diz o seguinte, em resposta a uma pergunta sobre a reação ao The Way We Eat:

“Estou satisfeito porque pessoas que são veganas e estão envolvidas em algumas das maiores organizações pelos direitos animais têm dado um forte apoio. Recebi algumas queixas por parte daquele tipo de gente que eu já esperava que me criticasse mesmo. Quero dizer, há pessoas que eu acho que estão sempre prontas para criticar outras que se encontram basicamente do mesmo lado que elas mas não são tão puras quanto elas, e aquelas pessoas ficam insistindo no fato de que este livro não diz simplesmente que você tem de ser vegano e mais nada.”

Singer ignora a questão fundamental. Quem acredita que é moralmente errado consumir produtos animais não está “do mesmo lado” que Singer. A posição de Singer não é nem um pouco diferente da posição dos exploradores institucionalizados de animais, os quais, como ele, afirmam que podemos usar animais contanto que tomemos o cuidado de assegurar que eles não sofram “demais”. A visão de Singer reduz o problema dos direitos animais a um debate sobre o que constitui “sofrimento demais”, e isso desvia da questão fundamental, que é a de que nós não podemos justificar o uso de não-humanos—por mais “humanitário” que seja esse uso. Não há nada de errado em ser um “purista” com relação aos direitos básicos. Será que alguém defenderia a idéia de que é “purista” rejeitar o estupro “humanitário” ou o abuso infantil “humanitário”? Claro que não.

Enquanto o chamado “pai do moderno movimento pelos direitos animais” considerar “fanática” a promoção do veganismo como uma base moral, o movimento continuará a fazer exatamente aquilo que vem fazendo na última década—andar para trás. Já está mais do que na hora de aqueles que buscam abolir a exploração animal, em vez de meramente regulamentá-la, renegarem “Nosso Pai” e se atirarem à tarefa de criar um movimento social e político não-violento que desafiará a exploração dos animais de modo significativo. © Gary L. Francione 

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