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Tolerância Zero


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por Rafael Bán Jacobsen

Gosto de me espelhar nos mais elevados exemplos. É por essa razão que acompanho de perto as declarações do presidente Lula – são verdadeiras lições de vida. Certa vez, na inauguração de um restaurante popular, Luiz Inácio nos brindou com uma profunda reflexão, contrapondo o radicalismo da juventude com a temperança trazida pela maturidade: “Eu passei tanto tempo da minha vida achando que ser antiamericano era não beber Coca-Cola. Depois, eu fui ficando mais maduro e percebi que, quando a gente levanta de madrugada e tem uma Coca-Cola gelada na geladeira, não tem nada melhor.”

Com efeito, espera-se que, com o passar dos anos, o indivíduo ganhe, além de algumas rugas e doenças crônicas, maturidade de espírito e todos benefícios que ela traz consigo: mais calma, serenidade, tolerância com as diferenças, compreensão e, conseqüentemente, uma tendência natural ao tão recomendável “caminho do meio”. No meu caso, no entanto, não tem sido assim: quanto mais velho, fico também mais rabugento, intolerante e desagradável. Minhas poucas qualidades vêm minguando em progressão geométrica, enquanto meus incontáveis defeitos crescem feito bolo vegano no forno e, pior do que isso, dão cria: um único bolo de rabugice posto para assar acaba gerando, de brinde, uma dúzia de brioches recheados de outras idiossincrasias pouco desejáveis. À guisa de consolo, gosto de pensar que essa tendência oposta ao esperado para a maioria das pessoas se manifeste em mim nos demais aspectos mencionados: se me torno mais e mais inflexível e ranzinza quando, ao contrário, o tempo deveria suavizar as arestas de meu temperamento, é de se esperar que nenhuma doença se manifeste nesse corpo que Deus me deu e que minha cútis fique a cada dia mais lisa e viçosa, sem botox nem lifting. Todavia, não sou tão otimista – a contramão só é possível quando constitui o caminho mais rápido e eficiente para tornar o sujeito pior.

Já houve época em que eu era uma pessoa aberta, afável e diplomática, mesmo naquelas situações mais potencialmente enervantes, como argumentar a favor o vegetarianismo. Eu era capaz de passar horas ouvindo as mais ridículas apologias do onivorismo, conseguia sorrir candidamente ao escutar pela quadragésima sétima vez na semana a máxima “Mas e a alface não tem vida?” e ainda responder a tudo com didática e voz pausada. Seguia com a diplomacia em circunstâncias em que Madre Teresa de Calcutá já teria partido para a porrada. Agora, porém, a imagem desse vegetariano pacífico e meigo não passa de um fantasma do passado, meio anêmico, acenando na poeira dos anos. Minha querida amiga e ativista pró-vegetarianismo Thaís Pimenta criou, no Rio de Janeiro, a rede “Gentileza Vegana”, cuja missão é promover o veganismo como um estilo de vida harmônico e compassivo, tendo por substrato a idéia de que é preciso ser gentil com todas as formas de vida, pois atitudes gentis geram reações gentis e contribuem para o despertar planetário. Uma lindíssima idéia! Eu, aqui em Porto Alegre, contudo, estou pensando em criar o movimento “Grosseria Vegana”. Bem mais a minha cara.

Dia desses, estava, como de costume, trabalhando voluntariamente em um estande de divulgação da causa vegetariana em uma famosa feira de produtores ecológicos da cidade. Foi quando surgiu uma moça que, ao ler um dos panfletos ali distribuídos, torceu o nariz aparentemente plastificado e disse: “Está tudo errado.” Observei: tratava-se de um singelo folheto intitulado “Proteínas e Vegetarianismo”, no qual se explicava o básico: que proteínas são compostas por aminoácidos, que os aminoácidos se dividem em essenciais e não-essenciais e que os essenciais podem ser todos encontrados com fartura em fontes vegetais etc. “Eu sou nutricionista”, prosseguiu ela, orgulhosa, “e nada disso é verdade: dos aminoácidos necessários para o ser humano, têm sete que são encontrados apenas na carne.” Senti um comichão na boca do estômago, seguido de um impulso de recomendar a ela que então pegasse um salsichão ou um quibe cru, cheinhos de tais aminoácidos, e desse a tais iguarias cárneas um destino anatômico pouco nobre. Refreei-me a tempo. Pedi a ela então que anotasse o nome desses aminoácidos para que eu pudesse pesquisar melhor a respeito deles. A mocinha, triunfante, tomou a caneta, pensou por alguns segundos e rabiscou o primeiro nome no verso do folheto: serotonina. Seguiram-se mais dois nomes absurdos, nada de leucina, metionina ou triptofano. Então, ela parou e disse: “Não lembro não o nome de todos, mas é por aí.” Apontou então a “serotonina” e explicou: “Esse, por exemplo, é o aminoácido do bem estar: essencial!” Pois essa frase acabou com meu bem estar. Naquele instante, descobri onde exatamente iam parar os meus alunos que, no terceiro ano do ensino médio, eram incapazes de somar duas frações ou fazer uma regra de três elementar. Naquele instante, vi, personificada naquela moça loira e bronzeada, de seios volumosos, a falência do ensino brasileiro e o triunfo da mediocridade. Confesso que desejei agarrar com violência os seus cabelos e, aproveitando o ambiente da feira, encarnar Dona Xepa, derrubá-la e surrá-la, rolando entre pés de couve, bulbos de cebola e molhos de agrião. Tudo orgânico. Desejei cobrir de hematomas aquele corpinho enxuto criado a frango grelhado com saladinha e gelatina diet de sobremesa (a combinação favorita de nove entre dez nutricionistas). 

Em outra ocasião, estava participando de uma manifestação pública pelo Dia Internacional dos Direitos Animais. Entre os vários cartazes e faixas expostos em via pública, havia um em que se via a imagem de vários frangos ensangüentados, suspensos pelas patas, de cabeça para baixo, nas famosas “linhas de desmontagem” das granjas industriais. Abaixo da foto, lia-se: “Assassinato em massa e automatizado. Se você pensou em Hitler, não foi por acaso.” Um senhor idoso parou, leu a mensagem e, com a voz trêmula e carregada de sotaque estrangeiro, gritou tão alto quanto o pouco vigor lhe permitia: “Eu estive na guerra. Eu conheci Hitler! E isso é absurdo: esse alemão matou pessoas, não animais. E vocês estão comparando pessoas com animais, isso está errado.” De uma pastinha de couro surrada, sacou alguns papéis amarrotados. Entre notinhas de lavanderia e bulas de remédios, encontrou o que buscava: uma foto amarelada em que se via um garboso rapaz em indumentária militar, o peito coberto de medalhas e outras condecorações. O velhinho seguia esbravejando: “Fui herói da Segunda Guerra. Sei do que estou falando, e vocês não sabem de nada. Comparar pessoas com animais? É um insulto!” Em outros tempos, eu teria me dirigido a ele com afabilidade, buscaria esclarecer os critérios sobre os quais uma legítima ética deve se embasar, versaria sobre a senciência dos animais, o conceito de especismo, mas não: deixei-me dominar pelos “instintos mais primitivos” (como diria um certo ex-parlamentar) e preferi fechar a minha boca para conter a baba raivosa que já começava a escorrer e evitar ainda que escapassem os impropérios para os quais  o líquido espumoso abria passagem. Uma réstia da luz do bom senso e da temperança despontou em minha mente: eu deveria respeitar aquele senhor, não só pelas condecorações de bravura, mas antes pelos cabelos brancos. “Vocês são uns ignorantes! Eu conheci pessoalmente o Führer! E conheci também o Stálin!”, vociferou. Perdoem-me os politicamente corretos, mas confesso que não me contive: “Bem relacionado o senhor, não? Só gente boa!” Ele, indignado, desfiou um rosário de palavras impublicáveis. Fiquei constrangido – era como se estivesse ouvindo meu avô discursar possuído pelo espírito da Dercy Gonçalves. Superado o choque inicial, retribuí suas palavras. Mas não se apavore o amigo leitor, aquele não foi um momento de pura baixaria; ao contrário, foi um momento de enlevo para nós dois, um momento de saudável e democrática agressão verbal mútua, em que nos esquecemos de toda diferença de idade, de experiências e ideologias – éramos apenas isso: dois ensandecidos extravasando rios de raiva. Naquela noite, dormi feito anjinho.

Poderia escrever um compêndio contando todas as situações em que, nos últimos tempos, meu estilo de vida vegano me rendeu dor de cabeça e me fez perder as estribeiras. Fico com apenas mais uma. Aconteceu em um encontro ecumênico, sobre religiões e vegetarianismo, um tema muito interessante. Simpatizei com um dos participantes logo no começo do evento; era um rapaz de rosto franco, maneiras educadas e espírito sagaz. No entanto, minha simpatia murchou instantaneamente assim que, em uma das oficinas, no momento inicial em que todos se apresentavam, ele declarou que havia parado de comer carne quando freqüentava o Santo Daime, pois, nessa ocasião, sua visão de mundo se ampliara, e ele conseguira, enfim, ver a conseqüência de seus atos. Até aí, tudo bem. Senti, de novo, aquele comichão no estômago quando ele contou que, atualmente, se dedicava a uma religião de matriz africana e, nessa religião,  o consumo de carne é totalmente desaconselhado, principalmente para os médiuns. “Comemos somente peixes e frutos do mar, porque não desfavorecem o equilíbrio energético das forças elementares do planeta e porque precisamos da energia acumulada nas vidas que habitam os mares, para a sustentação energética do campo astral de nós, médiuns, por combatermos cotidianamente energias muito densas.” Como se não bastasse ter violentado o conceito de energia, repetindo-o sem nexo algum e ad nauseam em uma só frase, eu estava diante daquela exótica espécie de vegetarianos da qual fazem parte ícones como Xuxa, Paulo Zulu, Gabeira, Fernanda Lima e Daniel Dantas: os vegetarianos que comem peixe. Para piorar tudo, aquela era a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvira para continuar comendo carne. Resultado: ergui-me da cadeira e, de dedo em riste, comecei um inflamado discurso sobre respeito, compaixão e minimização de sofrimento sem egoísmos ou barreiras de espécie. Pode ser verdade que eu tenha me alterado um pouco, pois os católicos presentes começaram a fazer sinal-da-cruz e a monja budista que coordenava a oficina ergueu-se pedindo calma. “Ahimsa, ahimsa!”, clamavam alguns. Retruquei que estava calmo, embora tivesse plena consciência de que não estava. A gota d´água foi quando alguém, tentando apaziguar os ânimos, disse: “Lembrem-se, meus queridos: até mesmo o mestre Jesus comia peixes.” Surtei. Prefiro não comentar o que se seguiu. Basta dizer que os organizadores do encontro, no ano seguinte, não me convidaram para participar da segunda edição.

Adoraria poder encher esta coluna de bons exemplos, mas, como disse, meus defeitos têm ganhado força com a idade. Estou a cada dia mais intolerante e intratável. Se não tenho como dar bons exemplos, resta torcer que o amigo leitor possa tirar algum aprendizado dos contra-exemplos. Esses sim eu os tenho em profusão.

 

P.S.: Considerando-se a grande repercussão de minha coluna anterior, intitulada “Missão Impossível”, vou abrir uma exceção e fazer o que NUNCA se deveria fazer: vou “explicar a piada”. Na realidade, o texto não é nada mais do que uma colagem de todas as mirabolantes histórias que já ouvi sobre os cuidados que eu deveria ter com a alimentação. Não inventei nada, apenas compilei (portanto, quem não gostou, por exemplo, da teoria das enzimas alimentares na qual em parte se baseia o crudivorismo que vá reclamar com a Ana Branco e quem não acha concebível viver de luz que vá reclamar com a australiana Jasmuheen). Qual a intenção dessa coluna? Exatamente a que se verificou: levantar polêmica e questionar nossos limites na busca por uma alimentação correta. E sim, o tom geral do texto é de ironia (um texto que contenha a frase “a soja é o capeta em forma de grão” jamais pode ser levado completamente a sério). Aos que não perceberam a grande pilhéria, não se preocupem: umas das colocações que mais escuto é “Rafael, nunca dá para saber quando você está falando sério e quando está brincando”. De qualquer modo, creio que o texto se saiu melhor do que eu esperava (algo que desperta reações tão diversas quanto “esta é a pior coisa que já li neste site” e “muito f*** esse texto!” só pode ser instigante). Agradeço a todos que comentaram e fizeram do texto “Missão Impossível” o recordista de comentários no Vista-se. Eu estou orgulhoso. Mamãe também.  

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